Você sabe realmente por que a pronúncia ADEVOGADO é ridicularizada?
Muito se critica a pronúncia da palavra ‘advogado’ com o som da letra E logo após o D na primeira sílaba (aDEvogado). As piadas são inúmeras, geralmente associando essa pronúncia a pessoas sem instrução ou até mesmo ‘burras’. Num rótulo mais generalizado, quem fala assim “não sabe português”, “assassina o português”, “assassina a língua”...
Isso é muito curioso por algumas razões. A primeira, essa pronúncia não está necessariamente associada a pessoas sem instrução. Acho que entre paulistanos essa pronúncia é bastante comum entre todas as classes sociais, embora não tenha base científica para afirmar categoricamente. Em segundo lugar, essa inserção do som da letra E é uma variação da inserção mais comum – e usada generalizadamente em qualquer classe social – do som da letra I.
Em resumo, a maioria das pessoas pronuncia a palavra com um som de I após o D na primeira sílaba: ADIVOGADO! A outra parte da população insere o som da letra E: ADEVOGADO!
Então, por que há tanto preconceito com a pronúncia ADEVOGADO se, de uma forma ou de outra, há sempre a inserção de um som de uma vogal?
Bem, os puristas vão dizer que a pronúncia correta é ADVOGADO (com D ‘mudo’). É até possível que num passado (bem) distante, as classes mais privilegiadas[1]até pronunciassem dessa forma, o que justificaria a grafia da palavra. Hoje em dia isso não mais acontece. Eu duvido, mas duvido mesmo, que alguém, numa fala normal, corrente, seja em ambiente formal ou informal, pronuncie essa palavra caprichando para que o som do D apareça sem a vogal I. Observem vocês, leitores, e façam as análises de vocês. Pessoalmente eu não conheço ninguém.
Os falantes brasileiros têm uma grande dificuldade de pronunciar sons consonantais sem vogais, porque eles não são comuns na nossa língua. Quando estudamos línguas estrangeiras que têm sons consonantais puros, um dos sotaques que mais identificam os brasileiros é justamente essa inserção de sons vocálicos. Por exemplo, quando um brasileiro pronuncia as palavras italianas STRADA ou STELLA, invariavelmente vai colocar um som de I antes: ISTRADA e ISTELLA. Nossa língua pede esse som. O mesmo acontece com o inglês STAR. Isso fica muito patente quando essas palavra seguem uma outra que tenha um som vocálico: LA (I) STRADA, LA (I) STELLA, THE (I) STAR. A bem da verdade, esses exemplos não são exatamente iguais aos do caso de ADVOGADO/ADEVOGADO, mas servem para ilustrar uma tendência.
Entretanto, situações bem similares à de AD (I) VOGADO se encontram em AB (I) SOLUTO, AD (I) MISSÃO, AD (I) VERTIR, OB (I) SOLETO... Também, em DIG (UI) NIDADE, IMPREG (UI) NAR, CONSIG (UI) NAR, casos em que, para representar graficamente o som realmente produzido devemos inserir duas letras. Aliás, 'impregnar' e 'consignar', costumam causar problemas de conjugação pela obviedade da inserção do som vocálico após o G; quem nunca ouviu alguém dizer "esse cheiro IMPREGUINA o ambiente" ou "a agência compra vende e CONSIGUINA..."?
Vejamos agora um caso muito semelhante ao do ADVOGADO, mas simplesmente aceito pelas pessoas, sem qualquer traço de preconceito: a palavra FUTEBOL.
Brasileiros em geral pronunciam essa palavra com o som do I em vez do E: FUTIBOL. Outros pronunciam-na FUTEBOL, especialmente em São Paulo. Tanto uma pronúncia como a outra são aceitas, sem discriminação, sem menosprezo, sem considerar a ‘outra’ forma como ‘errada’.
Parêntesis: estou considerando o som DI e TI como falado pela maioria dos brasileiros (e não pela totalidade), que é alguma coisa como ‘DGI’ e ‘TCHI’, diferentemente do padrão que deveria ser seguido se a língua não mudasse nunca.
Por que isso acontece? Acontece porque nós temos uma mania de tentar basear a língua falada pela sua forma escrita, o que é um equívoco. Afinal, quem repete todos os sons expressos na grafia das palavras? Se a palavra é ADVOGADO, por que falamos ADVOGADU (com um som de U quase apagado)? Por que falamos ISPERIÊNCIA e não EXPERIÊNCIA? (nesse caso, vejam que a grafia do X representa um som de S). No fundo, o que fazemos é buscar meios para discriminar quem fala diferente das pessoas que nos servem de modelo, que geralmente são as pessoas que compõem as classes sociais mais altas. Algumas pronúncias acabam por desaparecer, quando a pressão é muito forte. Outras permanecem e vão entranhando na sociedade, atingem as classes mais altas e passam a ser aceitas. Alguns exemplos práticos: o som do L em final de sílaba era lateral e hoje em dia é um som totalmente vocálico (U). Pessoas mais idosas ainda têm marcas dessa pronúncia, mas é bem rara. Outro exemplo, dessa vez de um caso de pronúncia que até pouco tempo era ridicularizada: o R vibrante em final de sílaba, aquela de PORRRTA, característico da variedade caipira. Hoje em dia, com a ascensão econômica dos falantes dessa variedade, sobretudo do interior de São Paulo, sul de Minas Gerais, Goiás, essa variedade não é mais discriminada, no máximo é comentada. Pessoas que têm essa pronúncia não mais se monitoram e a evitam, não há mais essa preocupação. Na TV temos diversos exemplos dessa pronúncia em programas variados, coisa que poucos anos atrás só era vista em programas de humor, como caricaturas de gente do interior.
Em resumo, a língua tem tudo a ver com poder econômico. Não podemos nos basear em grafia de palavras para determinar como deve ser sua pronúncia. É exatamente o contrário: a grafia das palavras é que é determinada de acordo com a fala. Claro, a língua muda constantemente e não é possível alterar a grafia a todo instante, mas isso não significa que a grafia é o ‘certo’ e a pronúncia divergente é ‘errada’. Ortografia é mera memorização!
Por fim, lembrem-se: a escrita é a representação da fala e não o contrário.
[1] Cito ‘as classes mais prestigiadas’ para explicar que toda a gramática, incluindo a ortografia, sempre foi criada com base na variedade dos falantes que detêm o poder. No nosso caso, nobreza e clero.
Fonte: Línguas Linguagem Linguística e amodireito
70 Comentários
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"Hoje em dia isso não mais acontece. Eu duvido, mas duvido mesmo, que alguém, numa fala normal, corrente, seja em ambiente formal ou informal, pronuncie essa palavra caprichando para que o som do D apareça sem a vogal..."
A jornalista Sandra Annenberg da rede globo pronuncia sempre com o D mudo quando está apresentando o Jornal Hoje. continuar lendo
Eu e a maioria das pessoas que conheço pronunciam assim: com o D mudo. Não me exige nenhum esforço. Achei que o autor do texto exagerou. Talvez tenha tomado por base a pronúncia das pessoas que conhece e julgou que os costumes delas fossem uma regra na população em geral. continuar lendo
Prezado Andre, estava prestes a fazer exatamente o mesmo comentário. Bom saber que não sou o único que reparei na pronúncia da referida jornalista. Abraços. continuar lendo
Afinal qual o sexo dos anjos ??? continuar lendo
A pronúncia correta é fácil, desde que se enfatize o A , Como se fosse escrito "Ádvogado". continuar lendo
Realmente Camila, é muito difícil falar de maneira correta. Nosso português é muito complexo, não só a escrita, mas também a fala tem suas peculiaridades. Mas você logo vai descobrir - pois está se formando em Direito - que tem outro motivo para se usar o ADEVOGADO. No meio jurídico é usado para zoar com advogados "ruins". Os próprios advogados falam com esse tom de deboche quando se referem a um colega que não tem comprometimento com seus clientes, alguns pensam que a advocacia só tem fins lucrativos. Estes advogados considerados "ruins" mal conhecem as leis, mas se acham acima do bem e do mal. Estes são os verdadeiros "ADEVOGADOS". continuar lendo
Bom saber, uma vez que ao ouvir essa palavra injuriosa dirigida a um "ADEVOGADO", ipso facto, já o condena de incompetente, na retórica utilizada pela Ilustre Doutora. Obrigado pela informação. continuar lendo
Oi Camila! De fato, há diferenças entre a linguagem falada e a escrita. Contudo, isso não exclui o fato, de que muitos falam pessimamente e por escrito, pior ainda. Quanto ao que um colega postou, é verdade. Muitos dizem AdEvogado quando desejam se referir depreciativamente em relação a algum profissional pouco preparado (convenhamos, há muitos). Quanto ao seu exemplo de "futebol" .. bem, na verdade é o anglicismo mal adaptado (do original, "football" ou "pé bola" que deu origem ao nosso "pebolim"). Assim como fico incomodado com o neologismo dos "hambúrgueres" sem pronunciar o h, ou então o tal "molho Sakura" (pronúncia correta é "sakurá", oxítona, significando cerejeira em japonês). E o "ad-vogado" tem esse d mudo pelo latim, "ad" (junto de)+"vocare", aquele que "empresta a sua voz", ou seja, aquele que defende uma tese em nome de seu cliente. Mas enfim, mesmo nestes idiomas que usam o sistema românico de escrita, sem necessidade da transliteração, acabam se perpetuando vícios de pronúncia pela má adaptação de um vocábulo vindo de outro idioma. Tem razão lógica quando diz que a escrita procura representar a linguagem falada e não o contrário. Mas numa terra em que os incultos são maioria, torna-se ciclo vicioso: seremos talvez compelidos a "escrever errado" só porque o povo fala errado? Devagarinho, tentaremos evoluir, para não fazer da nossa escrita pouco mais do que as pichações rupestres das cavernas de Altamira... continuar lendo
Concordo. Mas onde professores falam errado... continuar lendo
Dr. Martin, obrigado pelo comentário. De fato, estamos numa era em que o problema já começa com a discutível qualidade dos professores... continuar lendo
É fácil criticar; difícil é fazer!
Criticamos as formas distintas de dizer certas palavras, mas o curioso é que há vocábulos que foram aportuguesados (teipe - fita cassette, Gol - goal) e mantiveram a pronúncia original. Outras palavras foram corrompidas e alteradas (Alien se pronuncia eilien, em inglês) isso em
parte por que a língua, de fato, é viva e se transforma com as épocas e os modismos. Agora dizer "indiguina" ao invés de indignar-me ou deixar-me indignado é quase tão absurdo quanto dizer mortaNdela, mIndiNgo (mendigo) ou caRlota (calota de carro)!
Precisamos lembrar que o Brasil é enorme e que cada região tem suas variações, sejam fonéticas, na pronúncia de letras, sejam nas palavras e seus significados.
Minha principal queixa é com a necessidade de se falar empolado sem conhecer nem dominar o idioma! É o cúmulo da pretensao tentar falar com vernáculo sofisticado e dizer que algo é "diferenciado" como elogio, que é uma contradição, pois o Aurelio define essa palavra como abaixo do médio, do medíocre. Outro erro comum é a tal da estadia. Ora, estadia é o tempo de permanência de um navio no porto, enquanto que o período de férias é a estada. Mas num país que se "vangloria" de não ler obras (bem escritas) ou não ler, como disse certa vez o ex-presidente Lula, não é surpresa que tenhamos tantos exemplos de mau (a dificuldade em diferenciar mal de mau é assustadora!) uso da língua!
Sejamos tolerantes com os regionalismos, mas evitemos a ignorância presunçosa eivada de
pretensão culta sem lastro para tanto! Leiam, estudem gramática e desenvolvam seus vocabulários para não dizerem coisas diferentes do que se quer dizer por desconhecimento da própria língua! continuar lendo
Edson, antes de tudo, boa noite!!
Entendo o posicionamento do Martin. Mas, isso não é desculpa para justificar o incorreto. Quem realmente tem interesse em aprender a forma correta, "corre atrás" da informação, ainda mais com a disponibilidade de informações que a internet nos disponibiliza.
Queria que fosse assim nos meus tempos de escola, onde tinha que ir até uma bliblioteca, pesquisar grandes volumes até achar o conteúdo pesquisado, e arduamente com a boa e velha BIC, fazê-lo manualmente na boa e também velha folha de almaço, para obter um trabalho satisfatório, pois naquele tempo, que não é tão distante assim, o ensino era levado à sério. Hoje, com as facilidades que o"Ctrl C e Ctrl V" nos trazem, muitos nem se dão ao trabalho de entender o que estão fazendo, ou melhor plagiando. Prova disso é a quantidade de advogados que se formam, mas não conseguem passar no teste da OAB, para obter a tão sonhada "carteirinha de advogado", e isso aplica-se não somente aos advogados, é generalizado!! De certo ponto ponto de vista, as facilidades que a informática nos disponibiliza, também nos deixa "ignorantes", por puro comodismo.
Quanto à opinião da Camila, acredito que existam inúmeras variáveis, como por exemplo, regionalismo e dialetos (não é à toa que a língua portuguesa é uma das mais difíceis para aprendizado de estrangeiros), questão de sabedoria (ensino), que é diferente de cultura, pois um homem (ser humano) que estudou, pode não ter cultura alguma, que digamos, é lamentável.
OBS:
O seu comentário foi o mais interessante e relevante de todos que pude apreciar. continuar lendo
Dr. Randal - Primeiro, perdão pela demora em comentar sua postagem. Alterei meu cadastro aqui no Jusbrasil e isso acabou me "tirando do ar". Foi bem interessante ler seus comentários sobre este tema, do falar ou escrever incorretamente ou se podemos "flexibilizar" e deixar que cada um "excreva" como "quizer" ou então, se podemos tomar "xá" junto com algum "Chá" de alguma daquelas regiões que foram a antiga Pérsia (ou "Pércia"?). Sempre houve os dissidentes a alguma norma e não seria diferente com a escrita. Aliás, confesso que eu tenho dificuldades em aceitar a "nova" ortografia, visto que estudei muito para conhecer razoavelmente da (s) "antiga (s)". Perdi a conta, mas acho que esta é a quarta reforma ortográfica a que estou me submetendo. Poderia simplesmente criticar o pessoa da Casa de Machado de Assis e dar uma de "revoltado" mas isso estaria apenas disfarçando a minha preguiça mental. Enfim, creio que estamos discutindo (às vezes sem perceber) algo muito, muito mais amplo do que simplesmente gramática e ortografia. "Lato sensu", o que se discute é "comunicação". E é "lato" mesmo, muito amplo. Assim como tentamos entender a transmissão da cultura de povos diferentes expressa nos estrangeirismos como o colega bem expôs, a linguagem transcende e não fica restrito às relações humanas. O avanço tecnológico que o diga. Máquinas e humanos que se comunicam e até máquinas com máquinas. Muitas linguagens foram desenvolvidas e ainda se desenvolvem. Isso é um tema que nem cabe aqui, mas menciono ilustrativamente. Mas na linguagem de programação ("software"), a priori, não caberiam erros. Mas há erros imperceptíveis que os processadores "deixam passar" (leniência eletrônica?). Isso explica porque acontecem situações "inexplicáveis" como aqueles travamentos no momento de transmitir uma petição ou então a petição que é transmitida e depois simplesmente "some" (já vi isso umas vezes)... Estamos num mundo em que até as máquinas andam tolerantes com alguns erros de linguagem e com isso, criam erros maiores.... Mas para nós aqui, apenas estamos discutindo da necessidade de escrever corretamente ou ao menos, razoavelmente.... Muito grato pela sua atenção, caro colega. Bom dia. continuar lendo
Excelente sua explicação. Quanto à alteração da escrita em função da fala, a nobre "ADEVOGADA" da BA foi progressista demais...típico de esquerdistas. Que revolucione os costumes da família dela, não a dos outros. continuar lendo